JPcavalcanti

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Dansação: eu sou o sussurro daquilo que o Le Parkour é o grito.

Eu quero um estilo de vida onde eu possa dançar, sem parar. Um modo de viver que do espreguiçar na cama ao trocar de um pneu no acostamento da via eu possa dançar — a todo o momento. Uma forma de viver onde ao fazer as coisas eu esteja em constante flow, sem cessar. Um modo de vida onde a lida diária seja antes um alívio do que um peso. Isso é dança. Tudo é dança.

Assim como eu, sei que muitos também almejam encontrar tal estilo de vida dançarino. Mas como diz Charles Peirce, dentro da cultura apenas a estética tem o poder de gerar a ética — ou, em outras palavras, precisamos ter a imagem do que queremos viver para que possamos vivê-lo. Mas onde podemos encontrar este estilo de vida dançarino ao alcance dos olhos e das mãos? Por mais que eu tenha procurado este estilo nos últimos anos, devo lhes dizer que ele inda não está disponível nas prateleiras dos supermercados, nas estantes da Amazon ou nas vitrines do Youtube. Devo confessar-lhes que este sonho de consumo nem sonho ainda é — e pesquisei bastante para concluir isso.

Procurei em revistas e livros, papers acadêmicos e canais de televisão, em panfletos de rua e em recantos sombrios da vastidão da internet. Não existe curso que nos ensine a dançar o dia. Não existe viva alma nesse mundo que pareça viver neste compasso. Sim, os dançarinos, você poderia indagar se valendo da obviedade. Mas você já viu um dançarino profissional comprando baguetes na padaria ou passando um rodo no chão da área de serviço? Entediante. Meramente mundano como eu e você. O mundo é árido. Nenhuma pista do sonhado lifestyle que nos exumaria do senso de ridículo de sair dançando por aí sem propósito aparente.

De todos os preconceitos que temos, talvez o mais “natural” e que menos auto-consciência tenhamos, seja o preconceito do movimento.

 

Você já reparou o estranho desconforto que nos causa observar alguém movendo-se de forma diferente no meio da multidão? Talvez essa nossa repulsa por pessoas que se movem de forma diferente seja a depuração de toda nossa alma preconceituosa. Está aí a radiografia eminente de nossos julgamentos automáticos. Em verdade, não queremos que ninguém se mexa de forma diferente. Muito pelo contrário, admiramos as formações marciais, as massivas geometrias de exércitos de homens meticulosamente alinhados. Esse parece ser o nosso natural sonho como cultura desde a modernidade até hoje.

Apesar desta aridez, uma saída me mantém respirando sem a ajuda de aparelhos. Percebi estes dias, quando quase dormia, que há esperança — e ela se faz viva, mais uma vez, no território da imaginação. Minha ideia fixa de uma vida-dançarina se mantém firme e forte por causa desse instrumento maravilhoso que chamamos “palavra” — a chave-de-fendas da caixa de ferramentas da linguagem. No interim do meu dia e do meu sonho, sonambulamente pensei: e se criasse eu uma palavra para descrever esse ato julgadamente tão nefasto mas potencialmente tão sublime que é dançar os afazeres do dia? Um nome para se rebolar as tarefas diárias, uma sigla para gingar as demandas da vida? Adoro inventar palavras. Tenho feito isso por toda a vida e tem me felicitado a alma tremendamente. Mas como poderia eu chamar esta ação dançante? Este mover-se em regozijo frente ao inesperado do devir que sempre nos acomete nos dias comuns?

Lil Buck - the Memphis' jookin star, also famous for his forays into ballet.

Percebam, não falo aqui da esquiva malandramente. Antes pelo contrário, me refiro ao movimento que não apenas cumpre a tarefa determinada, como presenteia o mundo com um estilo. Falo da eficiência com requintes de liberdade! Esta palavra, portanto, deve enaltecer o ato junto com a dança, o agir junto com o dançar. Deve apontar para o movimento ornamental efetivo que realiza o afazer doméstico e a tarefa cotidiana. Sua nova classe de sentido não deve promover a performance. Nunca incentivar a infindável dicotomia entre palco e platéia, entre o artista e o público. Já está mais do que claro que não estamos falando da dança propriamente dita. Estamos falando, meus amigos, de uma fusão entre a dança e a ação, estamos falando de Dansação.

Dansação é Mindfulness, é Bodyfulness, é Heartfulness.

Sim, eis a libertadora palavra! A dança da ação, a ação da dança! Dansação é sobre efetividade. É sobre o corpo inteiro. Me diga uma coisa: você já cortou cutículas de corpo inteiro? Já assinou cheques de corpo inteiro? Ou dirigiu um carro de corpo inteiro? Ou ainda juntou copos plásticos do chão? Ou lavou as mãos? Ou os pés? Tudo isso de corpo inteiro? De corpo e alma? Pois é disso que falo meus amigos. Dansação é Mindfulness, é Bodyfulness, é Heartfulness. Dansação é viver o movimento incorruptível da vida com o corpo inteiro e com a alma dançarina. Dansação é o ato de um observador-vivente da vida dançante de um novo poeta do cotidiano — e, caro leitor, isso não é punheta. Nem tão pouco sexo oral. É sexo com tudo é ‘sexo total’. Com o corpo e de corpo inteiro!

Procurei a dansação entre os rappersb-boys e breakdancers — esses sujeitos que tão cheios de ginga profetizam uma nova cidade, uma nova possibilidade, uma nova forma de viver, mas que agora passaram a se ancorar em quilates, bundas e carros. Claro que os crioulos autênticos desse dia existem (glória!) mas estou aqui falando de cultura que se embala em massa, meus queridos. Quando generalizamos pelo viés da cultura — daquilo que é dominante — parece que estes sujeitos cheios de movimento, ao mínimo contato com globos oculares ou um com um punhado de views, transformam seu ato em performance. Rodas físicas ou virtuais se montam em torno do breakdancer, que ainda é um performer. Ele aponta para um novo léxico de movimentos do cotidiano, mas sua dança ainda é um show e não um espirro.

MARQUESE SCOTT & POPPIN JOHN, LET Go — 1.7 milhões de views no Youtube

Os movimentos querem ser perfeitos, querem impressionar, querem formar rodas em torno do habilidoso dançarino — que como uma fogueira humana emana calor, luz e inspiração, mas não contagia seu público para que façamos o mesmo dentro de nossas estagnadas vidas de lavanderia e repartições públicas.

Quero ser o sussurro daquilo que o ‘Le Parkour’ é o grito.

A dança que busco não tem a ver com isso. Quero a dança do cotidiano, a quebra de ossos improvisada que felicita a vida, onde o único espectador sou eu mesmo que sibilo e regozijo sem saída. Só dançando. Com minhas pequenas soluções mecânicas coloco a toalha de rosto no suporte da pia enquanto fecho a torneira com certa audácia e no contrapasso lanço a escova de dentes com perfeição dentro do copo de metal. Ponto! Procuro também o score e a perfeição, é verdade. Mas procuro pontos e perfeições diferentes. Busco a perfeição objetiva de uma porta fechando graciosamente sem emitir barulho ou a perfeição de um deslizar com as meias pelo assoalho da sala enquanto caio sentado na beira da mesa posta de café. Aliás colocar a mesa com dansação é uma arte em si. Buscar os talheres na gaveta da cozinha, ordená-los com a precisão de um robô na linha de produção — justo ao lado dos pratos e abaixo dos copos. Eis os guardanapos que como plumas caem sobre a mesa e descansam ao lado da familia dos aparatos de mesa. Logo depois quebro a cena com um giro atrapalhado que me leva a cair sentado na cadeira. Sanduíche caprichado, no melhor estilo dançarino.

Dansação: quero ser o sussurro daquilo que o ‘Le Parkour’ é o grito.

Essa é dança da mudança! É mais um dos antídotos que o mundo precisa. Por ora, não consegui descobrir tal modo de vida disponível para ser seguido, onde o dançar ao fazer não seja visto com maus olhos. Mas para tudo há um começo. Por enquanto faço a minha parte arremessando toalhas de rosto no suporte do banheiro e chegando sapatinho na mesa do café. Mas se você descobrir algum estilo de vida como esse disponível para o consumo, mesmo que seja um destes herdados dos anos 80, não deixe de me avisar! Pegaremos ele e tiraremos um pouco do pó de seu dorso e o usaremos como a forma de expressão dos nossos pés e de nossos filhos. Hastearemos a bandeira dançarina que permitirá nossa (r)evolução dançante e, finalmente, entraremos no compasso das divisões celulares e dos eventos tectônicos. Entraremos no ritmo da natureza e aprenderemos a ouvir a música de Gaia. Estaremos prontos para entender que a tecnologia mais avançada esteve sempre conosco embaixo de nossas narinas e acima de nossos narizes. Encostemos nossos umbigos num afago dançoso. Estamos prontos pra renascer!