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Marina Abramovic sempre desafiou os limites do corpo e da arte. Como o personagem que levou a arte de performance aos grandes museus e às grandes galerias, ela tem seu lugar garantido no hall dos maiores artistas do Século XX e início do Século XXI. Ela conseguiu o feito de colocar o corpo na posição de obra e a presença na posição de arte - e isso não é pouca coisa. Levou isso às últimas consequências. Seu derradeiro trabalho “The Artist is Present” é um statement que atingiu concomitantemente uma dimensão conceitual e popular que poucos momentos da história da arte foram capazes de conjugar. Sentada por dias inteiros em um salão no MoMA, pouca coisa além de sua presença, se colocava na frente do espectador. Uma aura quase espiritual tomava o processo que alimentava filas enormes em torno da performance. Sem sketch, sem objetos, sem movimento, só a presença. Trata-se de uma mestra — e como um bom mestre, quando Marina chegou neste limite ela ela olhou um pouco mais além.

Depois de oferecer sua pura presença como obra aos espectadores em 2010, Marina transcendeu o corpo e passou a fitar aquilo que é descorporificado, aquilo que está além, aquilo que pertence não à dimensão da presença física, mas aquilo que pertence à dimensão espiritual. Nessa nova fase Marina reencontrou o Brasil. Parceiro afetivo de longa data, o país é para a artista um repositório infinito de idéias, sentidos e sentimentos.

Cartaz do filme The Artist is Present, 2012

Cartaz do filme The Artist is Present, 2012

 

Brasil: Potência da Nova Espiritualidade

Esta transformação de Marina foi muito bem captada pelo documentário Espaço Além (Space in Between) — recentemente lançado aqui em São Paulo com a presença da própria artista. No filme, ela passa por uma imersão em diferentes linhas de trabalho espirituais autenticamente brasileiros — fenômenos que nasceram no solo fértil de nossa cultura interior. Lá vemos o retrato e a rota de um Brasil profundo, absolutamente necessário para o mundo hoje e também para o próprio Brasil. Em uma época crítica como a que estamos vivendo, o filme retrata um “Brasil interior” que precisa vir “para fora”, remontando um retrato e uma rota que, ao meu ver, revelam a verdadeira potência e a verdadeira vocação de nossa nação: a de ser um centro nervoso da nova espiritualidade e da nova religiosidade mundial.

Outros pensadores e agitadores culturais também vêm nos atentando para essa vocação do Brasil – a de “superpotência da espiritualidade” —  como revela o texto “Potência Espiritual” de Ronaldo Lemos publicado há algumas semanas atrás em sua coluna na Folha.

 

Maria estrangeira

Marina chegou numa encruzilhada da vida, da arte e da cultura humana. Quando chegou neste ponto, Marina fixou seus olhos no Brasil e, neste ponto, Marina virou Maria. Entidade viva do mundo da arte, como peregrina intuitiva se fez como uma entidade de nossa própria cultura, revelando a alguma parte da elite cultura brasileira uma ponte óbvia entre a arte e a espiritualidade autêntica da nossa terra. Pr isso Maria. Uma Maria estrangeira que precisa, mais uma vez, vir de fora de nosso contexto para apontar com precisão nossas riquezas. Mas não é apenas o dedo apontado para o coração de nossa nação que é o valor desta Maria, mas também o dedo apontado para o fragmento esquecido da obra de arte. Marina, com ajuda do "espírito brasileiro", chegou no ponto de perceber que a arte, assim como qualquer outra dimensão que tem o poder de “criar objetos” (como a própria ciência ou o próprio mercado) não acontece fora, mas dentro. Que a dor do objeto é apenas o despertar da consciência e uma Maria transcende a dor transcendendo a separação.  

Anteriormente, Marina, contribuiu para a história da arte com sua própria história artística ao nos fazer perceber que não apenas o objeto é a obra, mas que o processo e o artista em si também o são. Agora, como Maria, ela adentra a dimensão real dos domínios de nossa geração pós-contemporânea revelando, conjuntamente com vários outros artistas e agentes da cultura, a compreensão de que a obra está além do objeto, além do processo e além do criador. A obra é, também, o espectador. Essa integração e o entendimento de todas essas dimensões concomitantemente como criadoras da obra integral é o que podemos chamar também de espiritualidade. Em outras palavras: o espiritual e o pós-contemporâneo comungam a diversidade na unidade e a unidade na diversidade. Isso é espiritualidade. Isso é arte pós-contemporânea.

Cena do filme The Space in Between de Marina Abramovic produzido e filmado no Brasil

Cena do filme The Space in Between de Marina Abramovic produzido e filmado no Brasil

O Espectador e a caverna da Consciência

Marina reforça com isso não apenas um conceito absolutamente importante para a arte contemporânea, mas para a humanidade em si. Ela vislumbra este caminho em seu filme e encontra em nosso país o eco seminal e autêntico dessa jornada. Já na posição de entidade do mundo das artes, ela aponta o Brasil e a espiritualidade como soluções para a sua encruzilhada. Sendo o artista a antena da raça, como dizia Baudelaire, devemos nos antenar para estes sinais. Nos tornando também antenas. A arte somos nós.

Vemos pelos caminhos “errantes” de sua jornada espiritual nesse Brasil diverso que Marina é, como xamã e espiritualista, uma buscadora iniciante. Mas na dimensão da Arte é uma Mestra — e essa mestra-Maria, ao encontrar o espectador, a espiritualidade e o Brasil como respostas para a sua encruzilhada pessoal, nos deixa um sinal importante para o futuro da arte e para o nosso futuro: o sinal de que as respostas para a evolução de nossas relações com o mundo está na Consciência — esta caverna profunda e insondável, mas mágica e poderosa. Este ponto onde a física cartesiana sonha através da física quântica, o ponto onde a arte contemporânea começa a florescer no pós-contemporâneo.

Na última cena do filme Marina adentra uma caverna profunda e magnânima (talvez a própria caverna da Consciência) e ali acaba seu filme e sua transmutação através da fala profunda que é comum a todas as crianças e a todos os verdadeiros os artistas: 

“Agora, eu vou explorar!”


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