É notório que Alexander McQueen tenha sido um dos maiores estilistas de todos os tempos. Mas não é tão notório que Alexander McQueen tenha sido um dos maiores artistas contemporâneos de sua geração. Sua profusão inventiva é incomparável no seio da moda, mas também é vasta e profunda o suficiente para penetrar os meandros da arte. Suspeito, inclusive, que seu suicídio precoce deu-se justamente por seu denso universo criativo. Ele mesmo, por diversas vezes, em demonstrações perspicazes de auto-crítica, comentava que o seu cérebro precisava de espaço.
Espaço é o que ele parece buscar quando divide a sua carreira finalizando sua fase mais densa e prolífica com o desfile de Outono-Inverno de 2009 onde faz uma reflexão de toda sua carreira até ali evocando suas principais temáticas numa fogueira imaginária onde alguns dos artefatos cênicos dos seus principais desfiles da década anterior se encontram amontoados como num grande ferro-velho apocalíptico. Apocalipse que estende-se no tom soturno de um desfile lúgubre com silhuetas que se aproximam mais de ninhos e caixões do que de corpos humanos. Morte ou renascimento? O tempo confirmou essa resposta.
McQueen foi a corporificação do ápice do consumo corporativo dos anos 90, a materialização de uma crítica caustica e poderosa dentro do cruel sistema da moda que bombeia o sangue da renovação frenética no coração do capitalismo. Filho dos anos 90, garoto prodígio que atou as mãos da moda com as mão da arte McQueen é o Duchamp de nosso tempo. Ao mesmo passo que é também um inesperado seguimento da tradição Warholiana, pois transcende o território da arte em si, nascendo por completo em outro solo aparte que é o coração funcional do sistema da alta moda.
Seis meses depois do “velório” de McQueen por ele mesmo o artista renasce no emblemático desfile primavera / verão de 2010 evocando um futuro transumano de conexão com a geometria naturalmente sagrada da biologia simétrica. Vários eixos de quebra que mostram por inteiro o último ato de McQueen. Ali, como a própria década de 90, distantes já por uma década, McQueen se dissolve no caldeirão da utopia tecnobiológica que nos pervade até os dias de hoje e estará a nos envolver cada vez mais.
Como se não pudesse mais viver em um mundo de colagens estéticas que ora sobem aos aposentos superiores do clássico e oras descem às masmorras da falta de sentido, McQueen parece dissolver-se na contemporaneidade que é ele mesmo, deixando para nós em seu último desfile antes da morte uma pista com ares de destino para a nova humanidade que emerge.
Sarah Burton, fiel escudeira de McQueen, continua seu legado mesmo depois de sua morte. Como primeiro gesto de Burton dentro daquilo que se torna uma nova maison contemporânea, ela finaliza a última coleção tocada por McQueen para mostrá-la às cabeças da moda e da cultura selecionadas a dedo naquele que foi um desfile privado de proporções pequenas, mas de emoções profundas. Angels and Demons, desfile protocolar como o enredo de um velório, parece coroar de maneira literal e direta a vida interior de Alexander McQueen. Depois do suspiro onírico do futuro com sua coleção Platos Atlantis, em seu último gesto voltamos ao passado como uma forma de homenagem ou agradecimento à sólida base clássica que formou aquele que é um dos grandes nomes dos anais da história da moda e raro elo criador e criativo entre arte e mercado, entre disrupção e classicismo. Além de estilista, McQueen é um artista de vanguarda em seu próprio tempo.
Alexander McQueen é um gênio obtuso que há de ser estudado, relido e redefinido. Pois em sua carreira quase não há ponto sem nó para que ele se configure também como uma das pedras fundamentais daquilo que podemos chamar de arte pós-contemporânea - aquele lugar que por falta de definições dentro do solo da contemporaneidade nos incomoda. McQueen mora aí.
Mas é justo nessa falta de definição, nesse transbordamento entre áreas de saber, indústrias ou bolsões culturais que podemos sentir a autenticidade de nosso tempo, que rui e derrete estruturas e realidades com o caráter líquido. A liquidez que durante toda a vida fez questão de nos lembrar Zygmunt Bauman. Talvez a arte pós-contemporânea tenha seu início justamente por alí, entre os anos 90 e 2000, aos arredores de Alexander McQueen.
Para a moda, McQueen foi um ponto fora da curva no gráfico do mercado do conceito. Mas para a arte, McQueen foi uma nova curva fora do gráfico. Algo que a arte de tempos em tempos necessita para reafirmar talvez uma de suas únicas funções evidentes: a manutenção do espectro da liberdade no sistema. McQueen foi um gênio, uma ponte definitiva para que a moda transbordasse de si mesma e que a arte, mais uma vez, transbordasse das paredes institucionais que a prendem - como o fez Duchamp, como o fez Warhol e como o fez McQueen.
God Save McQueen!